29.5.05
A poesia de Glauber Rocha
Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos!
Não é mais possível esta festa de bandeiras
com Guerra e Cristo na mesma posição!
Não é possível a impotência da fé
a ingenuidade da fé...
Vejo campos de agonia,
Velejo mares do Não...
Na ponta da minha espada
Trago os restos da paixão
Que herdei daquelas guerras.
Umas de mais, outras de menos,
Testemunhas silenciosas
Do sangue que nos sustenta.
Convivemos com a morte.
Dentro de nós a morte se converte
Em tempo diário, em derrota
Do quanto empregamos,
Ao passo que vamos, recuamos.
Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo.
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência.
Devolvo à paisagem
Os vômitos da experiência...
Quando a beleza é superada pela realidade,
Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anêmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A miséria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fígado de raiva arrebentando, a garganta em pânico
E um esquecimento de nós inexplicável,
Sentimos finalmente que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida, agressiva.
Qual o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a História sem sofrer.
Até que um dia, pela coincidência,
As massas tomem o poder...
Ando nas ruas e vejo o povo fraco, abatido,
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Este povo cuja tristeza apodreceu o sangue
Precisa da morte mais do que se pode supor.
O sangue que em seu irmão estimula a dor,
O sentimento do nada que faz nascer o amor,
A morte enquanto fé e não como temor.
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Estou morrendo agora, nesta hora.
Estou morrendo neste tempo.
Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco,
um anarquista, que sempre...
Ah, não sei, Sara...
Até quando suportaremos?
Até quando além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando além da paciência e do amor suportaremos?
Até quando além da inconsciência?
Até quando? Até quando, Sara?
Sara, foi tudo por amor a você...
-- poemas esparsos do personagem Paulo Martins do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967.
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21.5.05
Wislawa Szymborska
Posso ter sido eu mesma, mas sem que me surpreendesse,
o que havia significado
ser alguém completamente diferente.
20.5.05
Adélia Prado
Cinzas
No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita,
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
e a seu modo pacifica.
As laranjas freudianamente me remetem a uma fatia de sonho.
Meu apetite se aguça, estralo as juntas de boa impaciência.
Quem somos nós entre o laxante e o sonífero?
Haverá sempre uma nesga de poeira sob as camas,
um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos aos mercados.
O que há neste exílio que nos move?
Digam-no os legumes sobraçados
e esta elegia.
O que escrevi, escrevi
porque estava alegre.
Adélia Prado
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18.5.05
Oração a Oxum
Ora iê iê ô Oxum,
Salve dourada senhora
Da pele de ouro!
Benditas são suas águas,
e essas mesmas águas lavam meu ser
e me livram do mal.
Oxum, Divina Rainha, bela orixá,
venha a mim, caminhando na Lua Cheia.
Traga, mãe, em suas mãos,
os lírios do amor e da paz.
Dai-me o néctar da sua doçura.
Mãe do ouro, da beleza e do amor,
Senhora do mais puro Axé,
valei-me hoje e sempre.
Aiê iê ô Oxum!
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3.5.05
Günter Grass
Pontualidade
No andar debaixo
uma jovem mulher
bate no filho
a cada meia hora.
Por isso vendi
o meu relógio
e só me oriento
pela mão severa
do andar debaixo,
os cigarros contados
ao alcance de minha mão.
Tenho o tempo bem medido.
Günter Grass, trad. MP.
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No andar debaixo
uma jovem mulher
bate no filho
a cada meia hora.
Por isso vendi
o meu relógio
e só me oriento
pela mão severa
do andar debaixo,
os cigarros contados
ao alcance de minha mão.
Tenho o tempo bem medido.
Günter Grass, trad. MP.
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2.5.05
O que há em mim é sobretudo cansaço --
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas --
Essas e o que falta nelas eternamente --;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada --
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
Álvaro de Campos, 1934.
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