27.4.05

José Craveirinha





Aforismo


Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

(1968)




Fábula


Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos.



José Craveirinha, considerado o maior poeta da língua portuguesa na África e um dos maiores escritores africanos.

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18.4.05

Argonautas



"Se uma alma
Quer se conhecer
É numa alma que ela deve se olhar":
Foi no espelho que
Vimos o inimigo e o estrangeiro.
Eram rapazes valentes, companheiros, não se queixavam
Nem da sede nem da fadiga nem do frio,
Faziam como as árvores e as ondas
Que aceitam o vento e a chuva,
Aceitam o sol e a noite,
E em meio à mudança, permanecem sem mudar.
Eram rapazes valentes. Dia após dia,
Suando nos remos, os olhos baixos,
Respirando em cadência,
O sangue colorindo-lhes a carne dócil.
Um dia cantaram, de olhos baixos,
Enquanto passávamos pela ilhota deserta das figueiras da
Barbárie
Rumo ao poente, depois do cabo dos cães que ladram.
Se ela quer se conhecer, diziam eles,
É numa alma que deve se olhar,
E os remos braceavam o ouro do mar em meio ao crepúsculo.
Dobramos muito cabos, muitas ilhas, o mar
Que dá em outro mar, gaivotas e focas.
Mulheres lacrimosas lamentavam-se às vezes
E choravam os filhos perdidos,
Outras, em furor, reclamavam Alexandre
E suas glórias submersas nas profundezas da Ásia.
Abordamos plagas cheias de aromas noturnos,
Cantos de aves, fontes que deixavam nas mãos
A lembrança de grande felicidade.
Mas não tinham mais fim aquelas viagens.
A alma dos companheiros confundiu-se com os remos e com
as cavilhas,
Com a austera figura de proa,
A esteira do leme,
A água dispersando seus rostos.
Um após outro, os companheiros morreram,
De olhos baixos. Seus remos
Indicam na praia o lugar onde repousam.

Ninguém se lembra. Justiça.


Georgios Seféris, em "Argonautas", anos 30.


11.4.05

Serguei Iessiênin




Dois poemas

A confissão de um vagabundo

Nem todos sabem cantar,
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.

Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

(1920)


Iessiênin nasceu em 1895 e foi um dos maiores poetas russos. Aos 30 anos suicidou-se num quarto de hotel em Leningrado cortando os pulsos e se enforcando. Alcoólatra, casou cinco vezes e três de suas esposas foram a atriz Zinaida Raich, a dançarina americana Isadora Duncan e a neta de Tolstoi. Contudo, o que é pouco mencionado foram seus relacionamentos clandestinos com homens. Antes de suicidar-se escreveu com sangue um poema de despedida dedicado ao poeta Anatoli Marienhof, com quem vivia há quatro anos:



Até logo, até logo, meu companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.


 (tradução Augusto de Campos)