11.4.16

4 poemas de Margarida Vale de Gato





Émulos
Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito? – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.
Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
com algum excesso que acelera a líbido.

E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido.

Com paixão e hipocondria
Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía

Avô Amaro


Quando o homem pisou a lua no café do meu avô

eu não estava lá [escrevi sobre isto antes por outra

causa mas (montagem, conspiração, solas ufanas de improváveis

galochas de lustro astronómico arrastando um pé retocado

pelo ângulo do vento bafejando ouro azul rubro e branco

e pura Americana forever) nem sempre há-de ser o mesmo

poema; neste o tema serve o desenho de quem era o meu avô:

ele tinha um café e um televisor ainda raro na altura, caixa

cúbica que todos convocou em torno ao espaço, só eu não;

eu era ainda para nascer e por isso lamento quando chegou

o primeiro homem à lua eu não estava lá] em Vendas Novas


e o café ficava em frente ao quartel e os mancebos

treinavam para ir matar no ultramar por causa do senhor

que julgava ainda governar Portugal mas também não esteve

lá e se calhar nem viu nada se calhar nem ouviu se calhar

nem deu por nada mesmo supondo um rouco transístor

seguro pela débil mão junto ao débil coração o enfermo

na cadeira de onde já tinha caído sem ter percebido

nada desconhecendo os mancebos e estes em paga

ignorando por uma vez tudo dele todos olhos e reparo

todos postos no futuro todos sôfregos na respiração

de Neil Armstrong lá longe na lua na televisão do Amaro


preto no branco o dominó em tampo de mármore em câmara

lenta derrubado passado tempo guerra regime ó leve coração

efémero o meu avô no meio do café a serradura era neve

de botas cardadas na lua que ele limpou quando voltou

a tropa ao quartel de fantasia em forma ele só atencioso

ele desperto afã de cuidar de varrer como sempre fazia

ele pepitas semi-acesas eram estrelas fabulosas da alegria

eu não estava lá nem estive quando anos após (eu tinha

dezoito) o coração dele parou eu soube como um soco

a primeira vez que alguém morria a lua não tremeu não se via

o meu avô pela sua fé sem qualquer tecnologia tornou ao céu



Aniversário


Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
à frente sem reparar deixava
as pernas ao desamparo do teu
agrado, tínhamos bebido ao meu
futuro e era uma fuga o teu
presente um disco que me deste
reluzia em semi-círculo e a nós
excitava seriamente escapar eu
fazia vinte anos tu
relanceavas-me as pernas eu
abandonava a adolescência
nem olhara para trás tu
miravas-me as pernas de trás. Nós
subíamos ao telhado eu
trazia um vestido curto nós
estávamos tristes creio tu
fingias-te um sátiro e nós
subíamos ao alto desarmados.

O tambor do sol batia
nos olhos que a luz e o álcool e a luz
e o álcool diminuíam
e os brancos raiavam o solstício
incandescentes eu
fazia vinte anos tu
tinhas-me dado uma música eu
rodava-a na mão e o sol
girava no gume do metal eu
de vestido curto descrevia
um círculo de desejo nós
estávamos tristes creio nós
tínhamos subido e a crista
das telhas beliscava na pele
petéquias de luz e tu
ao disco do sol dançavas e eu
de olhos cegos espiava fazia calor nós
tínhamos bebido e tínhamos calor eu
já tinha vinte anos nós
éramos o grande amor