6.2.07

José Carlos Oliveira

Evocação dos bares

Ainda existe, Lúcio Cardoso, aquele barzinho da Lapa, debaixo dos Arcos, onde eu, você, o poeta Gullar e o Binho passávamos longas tardes comendo siri e bebendo vinho branco. Você era o único escritor realizado ali presente. Nós outros estávamos iniciando a carreira. O Gullar era desesperado, o Binho, surrealista, eu tinha um medo danado da vida. Construíamos grandes montanhas com as cascas de siri, onde as moscas fervilhavam. E não havia nada a fazer, porque você sempre foi disponível e nós, naquela época, não gostávamos de trabalhar. O bondinho de Santa Teresa trepidava sobre nossas cabeças e, em torno de nós, o trânsito espesso da Lapa. Às vezes aparecia um bêbado e, vendo que éramos pessoas ilustres, porque só falávamos de coisas incompreensíveis, sentava-se conosco e bebia do nosso vinho e comia dos nossos siris. A vida naquele tempo era amável, ligeiramente amarga e sem dificuldade porque cada qual podia muito bem morrer no dia seguinte -- não tragicamente, mas -- como dizia Rimbaud -- par delicatesse. Agora mudamos de bar e nos compenetramos no futuro, esse tempo também, Lúcio, não volta mais.
[...]
Há pessoas que se ligam aos lugares onde moram de tal maneira que não se pode pensar em um sem pensar em outro. Não se pode falar de Rachel de Queiroz sem aludir, indiretamente, à Ilha do Governador; e a Lapa e Manuel Bandeira são dois nomes muito próximos um do outro. De Lúcio Cardoso não se pode falar sem pensar, primeiro, em Minas Gerais, e em seguida em alguns bares. Minas é o paraíso infernal que ele tem no coração. É o paraíso porque foi perdido; o inferno, porque nesse lugar mitológico sopra constantemente um vento maligno que, às vezes, apaga o lume dos castiçais. Minas e infância, para Lúcio Cardoso, são a mesma coisa; o Rio se confunde com sua maturidade. [...] onde anda o Lúcio? Já sei: quando não está escrevendo, está descobrindo e revelando algum bar. A quantos bares nos afeiçoamos, nesta cidade onde até os botequins, para quem é curioso, possuem sua especialidade. Ou é batida de limão, ou são pequenas mesas num compartimento espaçoso e vazio, ou a lingüiça frita que vai tão bem com uma cerveja, ou ainda a vista que se descortina de sua varanda. Cada bar deve ser descoberto, como um porão, como o fundo do mar, como todas as coisas.


José Carlos Oliveira, 1960. Crônica republicada em O homem na varanda do Antonio's, 2004.


------