4.2.05

Mallarmagem



o ônibus arranca pra Curicica depois de eu ficar quase duas horas no ponto com o sol queimando minhas meninges. eu conheço Curicica de ouvir falar e um amigo sambista espera por mim na quadra do Grêmio Recreativo União do Parque de Curicica. o cara só pode ser maluco. firmou de fazer um samba-enredo com versinhos de Mallarmé adaptados ao gosto popular e acha que com isso vai ganhar o carnaval, ou pelo menos chamar a atenção da mídia para a sua escola. eu entro na história quando ele pede minha ajuda na letra porque me conhece dos botecos da zona sul e sabe que eu tenho muitos livros. devo entender de Mallarmé, ele pensa. mas por que Mallarmé? com tanto poeta por aí mais fácil, mais brasileiro, eu disse. o povo não gosta de Mallarmé porque é burro, ele disse. a tradição é outra, eu tentei. e qual é a diferença? ele queria esculhambar o troço, fiquei quieta. enquanto o ônibus sacoleja eu retoco num papel amassado o estribilho que já tinha rascunhado em casa, certa de que ele, quando ouvisse aquela merda, desistiria de tudo e tiraria meu nome do rolo. um temporal desaba, o trânsito pára e da minha janelinha embaçada descubro o centro espírita Amor a Cristo. pareço completamente perdida? troco um substantivo. devo estar perto do famoso sanatório de Curicica, o projeto modernista de Sérgio Bernardes. uma lata de Redbull passa boiando pela calçada. os lojistas baixam as portas. lá fora a profundidade dá quase 1 metro. ninguém pode sair do ônibus. corto um adjetivo. na porta da casa 39, a família tenta salvar um estofado Barcelona das Casas Bahia. um alto-falante engasga Festa no Apê. a água sobe os degraus do ônibus. pronto. acabei. pego o celular e ligo pro sambista. o sinal vai e vem enquanto cantarolo o estribilho: jamé jamé jamé/ um joguinho de dados vai mudar o que já é. silêncio. ele grita. diz que adora. eu não a-cre-di-to. está lá, me esperando até agora para ouvir o resto. a chuva não passa. 


(Maira Parula,  em Não feche seus olhos esta noite, ed. Rocco, 2006.)