23.3.04

Ibn Ammar

O leitor Manolo Piriz, vasculhando os seus guardados, encontrou e me enviou um poema luso-árabe de Ibn Ammar - Abú Bakr Mubammad ibn 'Ammar (1031 – 1084), dedicado a Al Mutamid, rei mouro de Sevilha e também um grande poeta do século XI, época que deu ricos contornos à poesia ibérica. Valeu, Manolo.



Mais uma rodada, copeiro,
Que já se ergue a aragem da manhã
E a estrela de alva
Desviou a rota da noite viajeira.
A alvorada trouxe-nos brancura de cânfora
Assim que a noite reclamou seu negro âmbar

O jardim parece uma donzela vestida com a túnica
Bordada a flores e adornada com pérolas de orvalho
Ou então, jovem ruborizado de pudor
De rosas, alentado com a sombra do mirto.

E esse jardim,
Onde o rio lembra branca mão
Pousada sobre um tecido verde,
Mostra-se agitado pela brisa:
Dir-se-ia, meu rei,
A tua espada desbaratando exércitos.
Meu Senhor!
Verde brilhante são os favores da tua mão
Quando os céus se turvam de cinzento.
Teu dom é sempre generoso:
Se virgens dás têm seios opulentos
Se cavalos são de nobre raça
Se alfanges têm pedras preciosas.
Meu Rei!
Quando os demais reis se dessedentam
Esperam que ergas primeiro a tua taça.
És mais refrescante para os corações
Que o orvalho que se vai formando gota a gota
E mais agradável para os olhos
Que o doce peso do sono.
Faz faiscar a chispa da tua glória
Que não deixa nunca o fragor da lide
Senão para se abeirar do lume
Que mandaste acender para os teus hóspedes.
Rei,
Esplêndido no talhe e no espírito,
Como o jardim, belo de perto ou à distância.
Quando a teu lado me é servido
O rio celestial que mana do teu ser
É bem certo que estou no Paraíso.

Fizeste pender da tua lança
As cabeças dos reis teus inimigos
Só porque o ramo agrada
Na impaciência da flor?

Tingiste a tua cota com sangue de heróis
Só porque a formosa se enfeita de vermelho?
A espada, se a tua mão lhe serve de tribuna,
Dá lugar a súplicas mais eloquentes
Que as do melhor dos oradores quando prega.
Este poema é para ti,
Como um jardim que a brisa visitou
Sobre o qual repousou o orvalho da noite
Até que o ataviou de flores.
Do teu nome fiz-lhe uma veste de ouro.
Com o teu louvor derramei o melhor almíscar.
Quem me suplantará? Se o teu apoio é sândalo
Eu o queimei no fogo do meu génio
Quando as brasas estavam ainda a arder.
O orgulho no amor - temei-o - é a sua vergonha
Mas o prazer - aproveitai-o - é o seu ardor.
Não peças à paixão que te dê domínio
Prefere ser escravo, nas suas mãos é que tu és livre!
Vós me dissesses: O amor prejudicou-te.
Eu respondi: Quem dera me tivesse feito mal
É que meu coração escolheu doença para o corpo
Como forma própria de o adornar.
Deixai-o, pois, fazer a sua escolha
E não me critiqueis por estar emagrecido:
Não está a excelência de uma adaga
Precisamente na finura do seu gume?
Troçastes porque me deixou minha amada?
Quanto fim do mês oculta o crescente que vai vir!
Julgais que o fogo do esquecimento me consolará
Ou que um profundo sono chegará depois?
Mas ó coração, guerreiro da dor, se não sofresses mais
Como te acudiria o socorro das lágrimas?