9.4.03

Mallarmé





A Meia-Noite



Certamente subsiste uma presença de Meia-Noite. A hora não desapareceu por um espelho, não está oculta em tapeçarias, a evocar um mobiliado mediante sua vazia sonoridade. Recordo-me que seu ouro dissimularia na ausência uma joia nula de fantasia, rica e inútil sobrevivência, ou que, na complexidade marinha e estelar de uma ourivesaria, ler-se-ia o infinito azar das conjunções.

Revelador da Meia-Noite, ele jamais indicou tal conjuntura, pois aqui está a única hora por ele criada; e que do Infinito se apartem as constelações e o mar que permanecem, exteriormente, recíprocos nadas para permitir que sua essência, à hora una, crie o presente absoluto das coisas. E da Meia-Noite perdura a presença, na visão de um compartimento do tempo, cujo misterioso mobiliado detém um vago frêmito de pensamento, luminoso rebate do retorno de suas ondas e de seu primeiro espalhar-se, enquanto se imobiliza (num limite movediço) o local anterior da queda da hora numa calmaria narcótica de eu puro há muito sonhado; mas cujo tempo se transforma nas tapeçarias sobre as quais se detém, completando-as com seu esplendor, o frêmito amortecido, em olvido, como uma lânguida cabeleira em torno da face clareada de mistério, aos olhos nulos, semelhantes ao espelho, do visitante despojado de toda significação que não seja presença.

É o sonho puro de uma Meia-Noite, em si desaparecida, e cuja reconhecida claridade, que permanece solitária no seio de sua consumação mergulhada na sombra, resume sua esterilidade na palidez de um livro aberto, exposto pela mesa; página e cenário triviais da Noite, a não ser que ainda subsistisse o silêncio de uma antiga palavra proferida por ela e, a qual retornada, essa Meia-Noite evocasse sua sombra consumida e anulada por estas palavras: "Eu era a hora que me há de tornar puro."

Morta havia muito, uma antiga ideia se contempla como se fora a claridade da quimera na qual agonizou seu sonho e se reconhecesse no vago gesto imemorial com o qual se convida a extirpar o antagonismo desse sonho polar, a restituir-se com a claridade quimérica e o texto que se fecha no Caos da sombra malograda e da palavra que absoluta a Meia-Noite.

Inútil, o mobiliado consumado que se dissolverá em trevas como as tapeçarias, já imersa numa forma fixa de sempre, enquanto que, clarão virtual -- produzido pela própria aparição no reflexo da obscuridade, cintila o fogo puro do diamante do relógio, única sobrevivência e joia da Noite Eterna, a hora se formula nesse eco, ao limiar dos telões abertos para o seu ato da Noite. "Adeus, noite que fui, teu próprio sepulcro, porém que, sombra sobrevivente, se metamorfoseará em Eternidade."

-- Mallarmé, em "Igitur" (tradução de José Lino Grünewald).