26.4.03

A mãe que ama é a mesma que odeia foi um dos últimos ziguezagues psicológicos que meus terapeutas inventaram para me confundir, o que eles vêm fazendo com freqüência cada vez maior. Eles pensam que eu não sei que querem mais é que eu coma sabonetes para poderem mudar o meu diagnóstico a cada dia. Apesar de ser uma grande pintora, eles dizem que eu sou uma paciente que vive assaltada pela idéia delirante de ser uma grande pintora. Nestas horas perco a cabeça, mastigo bisnagas de tinta e quebro o nariz de pelo menos três auxiliares da clínica. Depois me aplicam uns eletrochoques e não sei quantos choques insulínicos. Fico com raiva de mim por ter dado tantas informações a meu respeito. Eles acham que sou uma paciente crônica e registram na minha ficha algo parecido com destruição progressiva do afeto, pensamento e memória. Pois sim, isso é o que eles pensam. Também pensam que eu não vejo os risinhos de chacota de enfermeiros e médicos ao verem que eu não largo minhas telas e até durmo abraçada com elas. Eu sei que no fundo vão dizer lá entre eles que eu estou preenchendo o vazio de minha frustração ou qualquer bobagem parecida com isso e eu quero mais é que eles se fodam porque já pedi mil vezes pincéis mas ninguém me ouve. Todos aqui dentro estão loucos para ouvir de mim que eu vejo almas mas eu não vou lhes dar este prazer. Pouco me importa que saibam que eu só vejo pincéis. Eu só vejo pincéis. E por trás deles telas, cores e planos. Dentro destes mais pincéis. Outros. De outras telas, cores e planos. Eles supõem que eu penso na morte mas o pensamento da morte não me serve de nada. Eu não vejo e não penso em nada, eu só escuto o que quero. E como eles ficam nervosos com isso. Semideuses de ambulatório barato, quem é louco aqui? Hoje é dia de acompanhamento familiar. Minha mãe entra com uma sacolinha e se senta à minha direita. Meu pai, você viu? O terapeuta diz que enquanto eu não for capaz de ser pai e mãe de mim mesma eu não terei alta. Minha mãe boceja e me passa a sacola discretamente. Abaixo os olhos e parece que ouço o caso é grave quando do embrulho salta à minha frente o mais belo jogo de pincéis que já vi na vida.

maira parula