12.3.03

obra póstuma do poeta


Entre os papéis do poeta Aluvião Malomar, foram encontrados rascunhos de poemas, idéias a serem desenvolvidas, bilhetes para ele mesmo com temas que obviamente pretendia usar em sua obra futura -- enfim, um verdadeiro tesouro de material inédito que seus editores fizeram muito bem em publicar, postumamente. Aluvião, como se recorda, esteve no noticiário dos jornais pouco antes da sua morte. Compareceu à delegacia de seu bairro para se queixar de perseguições fantásticas que estaria sofrendo, e que muito divertiram o plantão. Todos na delegacia sentiram a morte de, como o chamavam carinhosamente, "o doido aquele". O poeta era um asceta que vivia sozinho, voltado inteiramente para a sua arte. Três vezes por semana ia uma pretinha fazer a limpeza e as compras, mas é certo que Aluvião nem notava sua presença, tão absorto estava na criação do seu mundo imaginário.
No livro póstumo, agora oportunamente lançado, o material compilado, organizado e anotado por uma equipe de críticos estruturalistas dá uma nítida idéia do novo rumo que Aluvião pretendia para a sua poesia. De especial interesse para os estudiosos de sua obra é um poema semi-erótico que ele estava escrevendo em fragmentos, em pedaços de papel que os pesquisadores encontraram espalhados pelo seu quarto-e-sala, e que foram montados na seqüência aparente. O poema começa assim:
"Amanhã Doraci não me escapa. Coragem!"
É clara a intenção do poeta de experimentar um estilo mais coloquial para seus versos, ele que fora chamado "o último parnasiano", e que se notabilizara nos meios literários pela apaixonada defesa que fez do seu estilo numa monografia intitulada 117 Rimas Para Quimera, sem Contar a Primavera.
Na página 46, utilizando-se da forma revolucionária de uma lista de compras na feira, Aluvião vai mais longe na incorporação do cotidiano à sua imagística. O poema -- certamente ainda em embrião -- é assim:
"Chuchu, agrião, arroz
feijão e uma lata de óleo.
Ah, sim, e uma vassoura.
E passe no meu quarto para pegar
o dinheiro, Doraci."
Na página 47, o estilo torna-se mais elaborado. Sua intenção, agora indisfarçável, é a de contrastar a alegre fartura de uma feira livre com a contenção de sua misteriosa Doraci, um símbolo claro da fêmea enquanto pureza pré-cultural. Numa nota de pé de página, os compiladores chamam a atenção para esta quase paródia de um dos temas mais constantes do romantismo, que o poeta aqui renega.
"Alface, muita alface.
Aquelas batatas pequenas.
Miúdos de porco para o feijão.
Você ficou sentida comigo, Doraci?
Venha ao meu quarto,
que desta vez nada acontecerá.
Juro. O dinheiro está sobre a cômoda
longe da cama."
Página 48. Este esboço de verso intrigou os pesquisadores, pois parecia escrito por outra pessoa. É possível que, como utilizasse o ponto de vista da sua Doraci, o poeta tentasse escrever como a personagem escreveria. Há, inclusive, erros deliberados de ortografia.
"Seu Aluvião, assim não dá.
No seu quarto eu não entro mais.
Deixa o dinheiro na mesa da sala.
Olha que meu pai vai ficar sabendo.
Doraci."
Mas é a partir da página 49 que Aluvião começa a dominar o seu novo estilo. Seus versos ganham em força e expressão. Na certa seriam publicados como estão, se o autor não tivesse morrido tão misteriosamente.
"Doraci: Para o almoço,
quero carne assada, uma saladinha,
pêssegos em calda
e você."
O trecho seguinte é escrito, outra vez, na letra de Doraci.
"Seu Aluvião, meu pai descobriu tudo.
Vem aqui conversar com o senhor,
e meus irmãos também."
Na página 51:
"Doraci, diga a seu pai
que fiz queixa na polícia.
Se alguma coisa me acontecer,
eles saberão quem procurar.
Da feira não quero nada
E você está despedida."
Quando foi encontrado sem vida no poço do edifício, depois de ter-se jogado da área de serviço do seu apartamento -- certamente preso de profunda depressão por ter renegado o romantismo -- Aluvião tinha na mão o último verso desta admirável obra de sua surpreendente imaginação:
"Estão arrombando a porta.
Deve ser o pai da Do..."

-- Luís Fernando Veríssimo, 1978.