14.10.02

Rogério Duarte

Depois que eu deixei crescer a barba as coisas continuaram igualmente confusas, exceto pelo acréscimo da barba que se associa ao antigo caos e o revela com aparente nova fúria. Não sei mesmo por que me permiti tal embuste (sim, nada agora merece mais do que este qualificativo).
Foi depois da visita à fazenda natal e do retrato do bisavô peludo que acabou por me sugerir reencarná-lo. Caricatura do meu passado me tornei porque caricaturei a busca de mim mesmo indo atrás dos detritos que o meu caminho deixou à margem.
Estranho às vezes o meu corpo assusto-me frente ao espelho na vã tentativa de captar-me outro e recebê-lo na minha ternura ou, menos ainda, procurando especular sobre a aparência nova e suas possibilidades de realizar o paradoxal embuste de parecer humana, coisa aliás que não se realiza é apenas em função da minha recusa.
Terá que ser desta mesma guitarrística maneira o continuar no ato de fazer a ladainha dos pães de cada dia. Talvez tenha descoberto eu hoje uma maneira nova: não se trata de cometer o verbo mas sim de esgotar-se no só afã de cometê-lo, ou de convencionar-se para si a fatalidade de cumpri-lo. Isto poderia se compreender imaginando-se a ação de modo a não diferenciá-la da não-ação. E é tangível quando tragicamente se cai na penumbra da unidade, ou zona do fenômeno.
Talvez, se a fidelidade a cada dia me compra o direito de depuração contínua, eu chegue a escutar a viva voz que articula a vibração do manifesto.
Guitarristicamente tecendo em dedos e espera-deflagração.
Que chance? O meu destino desenvolveu-se enquanto eu mantinha os olhos tapados e já nem me reconheço nele.
Brutalmente a qualquer momento pode surgir a vida, eu sei que não estou preparado. O medo, que é sombra da luxúria, aproveitou-se do meu corpo inteiro como morada do seu escuro.
Eu sinto, quando estou falando com alguém, nitidamente a sensação de não controlar a espontânea linguagem de loucura e sofrimento que torna como que desconcertantemente ridícula (já que a cobre e nega) a comunicação esboço-vomitada.
É absolutamente igual à fé na chegada do Messias o prognóstico sobre a passagem de um Cometa. Se nos voltamos para o grande corpo, sem um sequer leve cilício, tomamos o líquido aviso, confundimos a nossa alma com Ele.
Daqui a alguns anos a moral será uma ciência misteriosa ao alcance apenas de uns poucos iniciados que, de resto, ninguém viu. A Fé, as Leis etc. serão no Futuro não muito distante de uns duzentos anos como hoje são a alquimia, astrologia e lá vai fumaça...
Eu sou muito amigo do Rei, eu me dou bem com o Rei, Eu sou o outro Rei.
Hereafter all will be different, you need to get a very human face...

--- Na revista "Navilouca", anos 1970.